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Textos




Bengala de Pedras
 
“Se eu precisar de uma bengala, será toda enfeitada de pedras coloridas.” (Eloisa Salviato)

 
Não é apenas em bengala emocional que nos apoiamos. Seis anos se passaram desde que ele começou a dar sinais de que algo estava muito errado no seu comportamento.  

Mesmo que estivesse dentro de casa, repetia incessantemente que queria ir para casa, além de fugas inesperadas, atitude que colocava todos em alerta. Quando veio o diagnóstico, o mundo da pequena família foi atingido como um vendaval. Sabiam o que vinha pela frente.


É muito difícil para quem cuida e ela está começando a sentir cansaço extremo, tanto físico quanto mental. Como se não bastasse, dois anos se passaram desde que ela teve que ser submetida a uma cirurgia de alto risco. Entretanto,  a força que ela tem por dentro é muito forte;  ela se recuperou e retomou os cuidados que foram interrompidos por longos meses. Mudou-se para a casa da mãe após a cirurgia e esperou pacientemente a sua recuperação. Os filhos se desdobravam para cuidar dos dois.

Foram casados durante muitos anos, sempre viveram no mesmo lugar, sem um mínimo de liberdade e grande dificuldade para criar os quatro filhos. Foi ele quem definiu o futuro daquela menina de quinze anos, quando pediu aos seus pais que lhe dessem autorização para casar-se. Dezessete anos mais velho, rígido e controlador, ela mudou-se de uma situação de severidade para outra, muito maior.  Honesto e com uma invejável delicadeza ao lidar com ametistas, safiras, berilos, esmeralda e turmalinas, confeccionava anéis, alianças e broches com perfeição. Depois, o conserto de relógios veio ajudar no orçamento doméstico.  Ele ensinou a profissão, pacientemente, para os dois filhos homens. 

Os quatro filhos em escadinha - foram chegando. Eles se orgulhavam do fato inédito que, no dia em que a primeira  completava um ano de idade, nascia a segunda, com diferença de algumas horas.
Entre cuidar dos meninos e da casa, o estudo foi abandonado, mesmo que a sua facilidade de lidar com as letras persistia e isso era um ponto positivo na ajuda dos deveres escolares das crianças.

Muito inteligente, finalmente começou a trabalhar fora, onde ficou até se aposentar, exatos seis anos atrás. Foi quando ele caiu doente. Começou aí realmente uma difícil missão, exatamente na hora de descansar e aproveitar a vida. Não deu tempo para que ele usasse uma bengala, pois a doença de Alzheimer veio com tanta força que o colocou-lhe o corpo (e a mente) incapaz de mover-se normalmente em pouco tempo.


Nos mínimos lampejos de sinais de vida e memória, ele fala em italiano com os personagens que criou. Após a difícil fase de zangas, hoje ele sorri com facilidade e espera docemente que o tempo passe, mesmo que não faça a mínima idéia do que seja tempo em sua vida, quando é de dia ou de noite.

As necessidades físicas tornaram-se um ritual de troca de várias fraldas por dia. Seu banho tem a duração de uma hora, por causa da dificuldade de lidar com seu corpo magro e frágil. Mesmo assim, com a dignidade magnífica de todos, ele ganha mimos em cremes, barba feita, pijamas limpos, mingaus, sucos e muito amor, enquanto ela chora por dentro, vendo a sua vida passar e plenamente consciente das batidas do relógio de parede que ele trouxe para casa, ainda quando era um homem com vigor e saúde.

O pai dela usava uma bengala marrom, de madeira maciça, feita por um amigo. Quando ele se foi, uma das filhas demonstrou interesse em ficar com a peça. Na verdade, é dela sim, porque mantém um carinho especial pela peça que ajudou seu pai a caminhar.  Agora, não somente com o esposo muito doente, ela divide o seu tempo com a mãe idosa que, mesmo com problemas sérios de locomoção, reluta em usar a bengala!

O temor de ficarmos doentes nos leva a atitudes pensadas e outras nem tanto. Cuidamos do nosso corpo e vivemos um dia de cada vez. Descobri recentemente que existem palavras nos muitos testes de Alzheimer que podem nos servir de alerta. “Planta, Tulipa e Poltrona” são algumas delas. O exercício consiste de repetir estas palavras todos os dias, sem errar e sem esquecê-las. E assim é. Na brincadeira, as três palavras passaram a fazer parte da nossa rotina, independente de nossa idade cronológica.

Ontem ela me escreveu, e eu via o seu desespero nas letras:
- É nuvem ? É nuvem?
Não conseguia lembrar-se de uma das palavras.
- O alemão(*) tá me pegando!

Eu caí numa gargalhada convulsiva.  Pensei na bengala de pedras coloridas que poderemos todos usar, um dia.





(*) Uma ligação com Alzheimer, médico alemão que descobriu a doença
 
Domingo de final de novembro, 2011
Imagens Google




Sunny L (Sonia Landrith)
Enviado por Sunny L (Sonia Landrith) em 27/11/2011
Alterado em 24/03/2012


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