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Textos




 Janelas Abertas       

 

 

Hoje há cinzas na lareira e cinzas no meu coração.

(Maria Helena Teixeira de Siqueira, “Janelas Abertas”, Flor&Cultura, 2006.

 

Nos poucos momentos de folga no trabalho corro para ler um pouco, colocar em dia as dezenas de livros que ganhei nos últimos anos. Alguns outros eu os comprei, porque não resisto a um cheirinho de livraria. Dentre as minhas paixões, as letras sempre vieram em primeiro lugar. Quando Fernando Sabino dizia “escrevo para saber por que eu escrevo” não entendia bem o que ele queria dizer. Hoje, muito mais madura, entendo cada vez mais que escrever é pensar em forma de letras.

Pode parecer estranho, mas as revistas que assino não são abertas; permanecem plastificadas. Tenho centenas delas empilhadas, cuidadosamente. Quando eu me vi completamente sozinha comecei a traçar alguns planos para a velhice. Eu quero ir para um asilo, de preferência com um quartinho bem pequeno e somente meu. Uma cama, uma TV, um rádio, alguns pares de óculos, uma imagem de Nossa Senhora e livros, muitos livros. Para isso eu tenho cuidado bastante dos meus olhos.  As revistas fechadas irão me acompanhar e serão colocadas por ordem de data num cantinho, numa estante aberta, como será a janela do meu pequeno quarto. Lá eu vou ler tudo que guardei e deixar o sol entrar.

“Janelas Abertas” é o único livro que li de uma pessoa que não conheci, mas que tenho a responsabilidade e o orgulho de continuar o que ela começou. Lendo suas crônicas, parei umas trinta vezes para rever a capa e a contracapa do livro. As mãos bem cuidadas sobre a cadeira de couro, o vitral ao fundo, o vestido rosa com apliques de flores, o colar dourado; bela, muito bela! 

De tudo que li, com uma gramática perfeita, muitas vezes extremamente formal, um pequeno texto chamou-me a atenção: quando ela teve que cortar uma árvore que ficava de frente à sua casa. Dizer da beleza do texto de Maria Helena não é necessário. Falemos de algumas “árvores” que precisamos cortar; não somente aquelas que possuem galhos e folhas.

A casa é muito pequena, meio escondida da rua. Para chegar até lá pela frente, temos que descer uma rampa, com um canteiro de “beijos” de todas as cores. Do outro lado, a ladeira de pequenas pedras vai de encontro aos pés de amoras e uma pontezinha, de onde vemos uma cachoeira barulhenta, que embala os sonhos de quem está tão perto dela. Às margens da cachoeira, enormes abacateiros e jaqueiras. No pequeno quintal, as flores e orquídeas circundam a casa inteira. Bem no meio do jardim, um ipê roxo, imenso, que vi crescer timidamente. Ao lado da casa, uma jabuticabeira que dá frutos de cor branca, enormes.

A casa precisa de reparos e não suportou o peso do tempo. Para se ter uma idéia, minha irmã dorme na casa da mamãe todas as noites, há mais de um ano, porque o único quarto da sua é ocupado pelo marido e sua enfermeira. Nega passa o dia inteiro cuidando dele, mesmo depois de uma cirurgia muito delicada. Ela não tem preguiça, cozinha para todos. Eu mesma recebo deliciosas sopas congeladas em pequenos potes, um manjar dos deuses para a minha total inaptidão de cozinhar só para mim. De noite, Nega pega sua trouxinha e desce até a casa da nossa mãe. Faz companhia para ela e adotou um dos quartos do grande casarão. Se eu ficar falando como ela faz para que sua vida seja plena...

Pois é... A jabuticabeira terá que sair do seu canto, para dar lugar a um quarto para ela. Nega conversa com a árvore todos os dias. É como se ela fosse uma pessoa e sei muito bem que cada galho dela entende as centenas de vezes que ela repete que a ama demais. É um ritual quase que religioso com pedidos de desculpas e muitas explicações. E a árvore a escuta.

A árvore de Maria Helena abrigou os quatro filhos nos deveres de casa, nas aulas de catecismo, nos piqueniques com a família. A de Nega também abrigou quatro filhos e muitas bacias de jabuticabas foram partilhadas. A árvore da gaúcha Maria Helena serviu de cinzas para a lareira do frio imenso da serra. A árvore de minha irmã será um pé de mesa e ficará com ela para sempre.

Enquanto divago com as árvores, vou empihando meus livros e revistas para abrigar a minha velhice. Assim como as cinzas no coração de Maria Helena, com certeza Nega vai dar um jeitinho e plantar uma outra jabuticabeira, nem que seja na rua.

Bom domingo!
Foto Google, adaptação by Sunny


Sunny L (Sonia Landrith)
Enviado por Sunny L (Sonia Landrith) em 27/03/2011
Alterado em 27/03/2011


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