free web counter
Textos

A arte de contemplar
 
 
 
“Traga seus sonhos para a superfície. Sobretudo seus sonhos de criança. Quando abandonamos os sonhos, fenecemos.” (Dominique Glochfux, em “A vida é bela”)
 
 
 


 
Quando menina, passava horas esperando a transformação de uma folha nascendo. Outro dia eu pedi um galho de mirra na academia onde eu faço natação. A Ana relutou em me dar o pequeno galho, talvez porque ela estivesse com ciúmes da planta, magnificamente cheirosa. Vim embora pra casa toda feliz e logo coloquei o minúsculo galho dentro de um copo com água, para que aquelas raízes que parecem agulhas aparecessem e eu pudesse transferir a minha “árvore de mirra” para a terra.  Todo dia cumpro um ritual simples, mas de um significado muito grande para mim: visito as plantinhas que tenho e vejo as pequenas transformações que elas me proporcionam nos dias que parecem voar.
 
O hábito de caminhar, hoje bem menor que há alguns anos, levava-me a contemplar os quintais das casas do meu bairro. Era como se fosse uma mola propulsora para me levar às caminhadas matinais. Até poucos anos, se passassem dez carros por dia pelo meu bairro era uma façanha! As lindas casas foram sendo construídas, junto com os sonhos dos novos casais. Os filhos nascendo e com eles os pequenos jardins e hortas, com os cachorrinhos ajudando na construção dos espaços. Vi ipês de todas as cores, acácias e castanheiras enfeitando as ruas do meu belo bairro. Eu voltava pra casa sempre com um pedacinho de planta e assim fui construindo os meus vasos e pequenos canteiros. Houve uma época que eu me encantava com a batata-doce! Comprava as batatas na feira e esperava que começassem a dar uma pontinha de muda. Cuidadosamente,  colocava a batata em água e logo minha cozinha estava linda e verde, com uma cascata de folhas descendo pelos armários. Era fantástico. Não durava muito tempo, mas só o prazer de contemplar as folhas da batata já valia até a próxima feira.


 
Tenho uma amiga que eu sinto saudade demais. Ela nunca teve ajudante na casa dela e acordava cedinho pra arrumar tudo e deixar o almoço pronto para seu filho, antes de ir trabalhar. Todos os dias ela chegava com um sorriso parecendo uma sanfona aberta e me dizia, mesmo estando triste ou preocupada.
 
 - Soninha, quer coisa mais “boa de boa” do que você pendurar a roupa na corda?
 
Somente depois que passei a viver sozinha é que entendi o que ela queria dizer. A ultima atividade na arrumação de uma casa é pendurar a roupa no varal. Claro... Fácil de imaginar! Enquanto colocamos as coisas no lugar tem algumas peças de roupa ganhando cheiros novos dentro da máquina de lavar.  Quando penduramos as roupas e colocamos as roupas no varal, podemos nos sentar e contemplar o que quisermos, tomando uma xícara de café,  se o tempo permitir. Na casa dela tinha uma parreira de chuchus que ela tomava conta como se fosse o filho dela. Tinha um prazer enorme de sentar-se no pequeno quintal, olhando as folhas se espalhando. 



 
Contemplar não é apenas ver a beleza de uma paisagem. É sentir a propriedade dos nossos olhos, que nos levam onde queremos enxergar.  Como eu fazia com os céus de carneirinhos e dele tirava as imagens que a minha imaginação desejasse. Ou via o verde de minha batata-doce mais verde que a cor representa. A contemplação nos leva a pensar e o pensamento viaja com as imagens que formamos. Os carros são muitos agora, os jardins foram destruídos pelas dezenas de prédios que nascem todos os dias. São os jardins de concreto dando lugar às hortinhas, ipês, acácias... E o mais incrível é que os prédios levam o nome das árvores aqui no meu bairro. Em frente à minha casa, havia três pés de acácias brancas. Com a construção do edifício, duas foram derrubadas e uma ficou, junto com o nome do lugar.
 
Levei Nina pra passear ontem de manhã e passei por uma das últimas casas do meu bairro querido. Entre surpresa e em choque, vi a casa sem as goiabeiras, os coqueiros e o enorme pé de acácia que enfeitava a casa. Tudo limpo, sem nada... A resposta que obtive foi a mais simples possível – as árvores tiravam a segurança da casa e no seu lugar foi colocado um sofisticado sistema de segurança para a família.
 
Enquanto isso, meu pequeno pé de mirra cresce na varandinha do meu quarto.
 
 
 
Bom domingo! 
Ilustrações : Ipês, Acácias e Mirra.
 
 
 
 
 
Sunny L (Sonia Landrith)
Enviado por Sunny L (Sonia Landrith) em 29/08/2010
Alterado em 29/12/2010


Comentários

Site do Escritor criado por Recanto das Letras
art by kate weiss design
www.amordepoeira.com -- Academia Feminina Espirito Santense de Letras - AFESL -- www.afesl-es.ning.com