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Textos



Calendário de Família



 
Quando eu era bem pequena havia uma loja na minha terra que vendia tecidos, sapatos, panelas e móveis e era considerada a maior  da região. À época do seu aniversário, alugavam um caminhão, separavam dezenas de metros de tecidos de chita e colocavam um senhor de voz grave em cima do caminhão, estrategicamente estacionado na praça principal da cidade, a convidar os habitantes para apresentar seus dotes artísticos. Assim que eu ouvia o burburinho do caminhão, corria para a fila para me inscrever no show de calouros, porque tinha absoluta certeza que eu ia ganhar um tecido pra fazer um vestido. Ninguém ia negar aplausos a uma garotinha loura, que tinha que subir numa caixa para cantar “Estúpido Cupido”, cuja letra ela não tinha a menor idéia do que se tratava. Bom, de qualquer modo, Neném do Rosário, com voz possante e já mocinha, levava o tecido pra casa também. A esta altura, minhas irmãs já estavam à minha procura e quando me encontravam na praça, meu rosto afogueado e feliz mostrava a alegria no tecido de chita, roupa garantida para a festa da cidade, que estava próxima.
 
No calendário de minha família havia a convivência plena entre nós e este era o principal e absoluto argumento que nossos pais nos impunham. Nunca fomos a um baile, nunca pudemos ir a um circo, ou brincar um carnaval. Nossos passos eram controlados por um pai amoroso e severo, entretanto não tenho lembrança de termos sido agredidas por ele. Bastava um olhar e entendíamos o que ele queria nos dizer. Mamãe trabalhava dia e noite para o sustento da família e não lhe sobrava tempo para folguedos conosco. Havia reza na igreja todas as noites. Não sei dizer como eu consegui tantas flores para o altar, trocadas todos os dias, com a presença constante da querida Nega e Dona Odisseya.  Não conseguia entender o que fazíamos no meio de algumas dezenas de pessoas muito idosas, na maioria mulheres, com uma fita vermelha ao redor do pescoço e véus negros. Quando eu era escolhida para ficar na frente do altar, de véu branco e muita ansiedade, eu tinha muita vergonha, pois não sabia e nada entendia de todas as rezas. Somente hoje é que entendo perfeitamente o que cada palavra do Pai-Nosso significa.
 
No calendário de nossa família havia um cuidado especial com nossos cadernos; digo, com os cadernos de minhas irmãs. O uniforme de minha irmã Tica era perfeito e as preguinhas eram passadas a ferro de brasa, uma a uma. Não me preocupava muito com as preguinhas do meu uniforme. Eu não sei realmente dizer o que se passava em minha cabecinha, pois tudo que eu queria era o novo, o essencialmente novo : uma árvore que ganhava um galho, uma formiga trabalhando no chão (adoro o trabalho árduo das formigas), um café coado às duas da tarde. Eu me esparramava no chão da varanda para fazer o dever de casa. Em cinco minutos o dever estava pronto. Ao meu lado, dezenas de pedrinhas que eu adorava recolher nas ruas. Uma delas me pregou uma peça... tirou um pedacinho (enorme) de minha perna esquerda, marca que carrego com orgulho até hoje. As pedrinhas foram substituidas por livros num piscar de olhos. Era o meu calendário sendo cumprido.
 
No calendário de nossa família havia momentos de ternura, de profundo amor e respeito um pelo outro. Nunca tínhamos segredos; toda nossa vida era partilhada em detalhes. O prato de comida era igual para todos, o tamanho da cama variava com a idade de cada um. (Obviamente a minha cama era minúscula, por eu ser a mais nova e pequenina, mas sinto o seu cheirinho até hoje).
 
No calendário de minha família o tempo passou, inexorável. As formigas ainda trabalham arduamente; os galhos das árvores crescem, as pedrinhas foram substituídas pelo asfalto quente. Os cadernos ficaram guardados nas gavetas e no coração. O caminhão de minha meteórica carreira de cantora não existe mais. Papai nos deixou... para nossa saudade. Mamãe linda continua entre nós, orgulhosa dos netos e bisnetos, cujo sorriso se alarga quando fala deles.
 
Cada um formou sua família, dando lugar a um novo calendário...





E eu que te amava tanto... se tivesse que ser, seria você.
(21 fev 2010, Sunny Lóra)

 
Para Lilinha, Bom Domingo!

Ilustração recebida de SueB

Sunny L (Sonia Landrith)
Enviado por Sunny L (Sonia Landrith) em 21/02/2010
Alterado em 29/12/2010


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