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Textos



É cedo e chove


 
Quando o céu chora demais começo a ficar preocupada, introspectiva e saudosa. Costumo abrir a porta de vidro que separa meu quarto do mundo pra deixar o som que a chuva traz mostrar-me primeiro o bom : o seu valor de fazer crescer o verde e depois, o ruim : a força de ajudar a destruir o que os homens não respeitaram na natureza. E quem sofre são as pessoas que mais precisam... Ver pessoas teimando em ficar em suas casas, mesmo sabendo que correm riscos, traz um efeito devastador nesta minha mente que pensa demais no próximo. Dou sempre um jeitinho de arrumar algo pra ajudar, nem que seja com um pacote de pão.
 
Do outro lado de tanta tragédia, existe um sentimento que sempre volta com amor que poucos sabem medir: o pouco tempo que vivi com minha família em minha terra natal. É esta saudade que eu faço questão de ter, porque ela me trouxe tantas boas lembranças, mas com efeito de edificação, de vontades realizadas.
 



O teto de nossa casa era de zinco. Não sei se todos já tiveram oportunidade de ouvir o som que a chuva provoca no zinco. A chuva aproximava as famílias. O cheiro de mate queimado espalhava-se pela casa e os pais corriam a colocar os pijaminhas e camisolas feitas de flanela, todos do mesmo tecido : rosa pra as meninas e azul para os meninos.

Era época de usar galochas para ir à escola. Adorávamos andar pela correnteza provocada entre a rua e as calçadas, com as galochinhas protegendo nossos pés e estes fazendo uma verdadeira festa de chutes na água vermelha que a terra trazia dos morros. Não víamos perigo, porque realmente não existia. Chover era festa... Não nos trazia dores e sim a certeza que o café ia nascer mais forte do que nunca.

As chuvas de gelo, que chamávamos de “pedrinhas”, eram motivo de sair correndo pra dentro de casa e pegar a canequinha de alumínio para pegá-las pedrinhas no ar e levá-las à boca, como o mais delicioso dos picolés. Geladeira? Não havia... mas fogão de lenha havia aos montes...



 
O mais gostoso de chegar numa cozinha em dia de chuva era ver a cordinha que mamãe fazia, onde pendurava carne de sol, linguiça italiana (e bananas da terra, prata e ouro, que surrupiava o dia inteiro, hábito que mantenho com orgulho e que todos se lembram com carinho). Pra que eu aceitasse a carne de sol e a linguiça levava bem uns longos dias, porque a festa provocada pela manufatura destes alimentos ecoava nos meus ouvidos com muita força. Só de pensar que eu teria que correr muito pra não ouvir ou ver o abate dos animais me dá arrepios... por isso sou fã incondicional de frutas e legumes, principalmente sopas.
 
Enquanto a chuva cai, deixo chegar uma das lembranças mais doces que tenho de minha infância: a Noninha Cecília. Ela era doce de todos os modos. Tinha uma paixão especial por mim. Quando fui embora estudar muito, muito longe, minha noninha viveu apenas por sete meses e eu só fui saber disso um ano depois. Uma pessoa me disse que ela não suportou a saudade da sua menina, que chamava da "Amorosa".


Nunca falou alto com nenhum dos seus filhos (uma penca enorme). Aliás, nunca falou mesmo, porque tinha extrema dificuldade de entender a língua portuguesa. Cantarolava canções italianas bem baixinho, enquanto ninava a todos, sem preferencia por qualquer um deles.
 
Todos os anos, em julho, nosso pai visitava a fazenda onde meus avós eram meeiros e nos levava junto. A grande mesa de madeira abrigava pão “preto” (o integral de hoje); polentas enormes, que eram cortadas com uma linha fina; queijos feitos com mãos carinhosas, milho cozido, ovo frito, raditio (aquela folhinha verde e amarga que compramos nas grandes feiras). Depois da “reza”, íamos todos dormir e enquanto a chuva caía lentamente, os colchões de palha balançavam nossos pequenos corpos nas camas, de um lado para outro. Eu me sentia num barco com águas zangadas ao meu redor!
 
A primeira coisa que eu queria de manhã cedinho era escovar os dentes. Eu só não entendia que somente o tio Clarindo tinha a tal da pasta Kolynos, que eu pedia humildemente pra me ceder um tiquinho que fosse. Ele me dava uma nesguinha, com uma pena de dar dó!

Feliz, comia correndo o pão preto com café e corria pelos pastos, morrendo de medo do Boi Pretão que nossa família amava tanto. Eu explorava tudo e o que mais me deslumbrava era a beleza das flores dos maracujás e os girassóis ao redor da casa.



 
Tempo de chuva em tempo de amor à natureza, onde braços fortes e cansados nos faziam criaturas felizes, sem medo de barrancos, pedras, alagamentos, buracos.


 
sábado, 31 de outubro de 2009
 
 

Sunny L (Sonia Landrith)
Enviado por Sunny L (Sonia Landrith) em 31/10/2009
Alterado em 30/12/2010


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